Por mais que os empresários se queixem de mais uma crise econômica e estendam suas mãos aflitas ao governo, não se pode negar que num certo sentido o teatro está mais na moda do que nunca: a quantidade de cursos relacionados com atividades dramáticas que se abrem no Rio ultrapassa qualquer expectativa. Pelo menos uma vez por semana tomamos conhecimento do lançamento de mais um curso ou cursinho de introdução à interpretação, ou de comunicação através de técnicas teatrais, ou de atividades dramáticas para crianças e jovens, ou de preparação de professores de teatro. Este último setor, sobretudo, recebeu notável impulso desde que a Lei da Reforma do Ensino tornou obrigatória a área de Educação Artística nas escolas de primeiro e segundo graus e incluiu especificamente nesta área a disciplina de Artes Cênicas.
A proliferação dos cursos e cursinhos constituiria um fenômeno saudável se não fosse tão indiscriminada e potencialmente aberta a todas as picaretagens. Uma vez que o ensino de teatro e atividades correlatas não foi ainda regulamentado e não se acha sujeito à fiscalização, qualquer leigo pode abrir um curso e começar a faturar. E os candidatos a alunos não têm nenhum meio de averiguar a idoneidade da iniciativa da qual pretendem participar.
Dois elementos contribuem para agravar o problema. O primeiro é a invencível crença brasileira de que qualquer pessoa razoavelmente desinibida é capaz de fazer teatro, sem submeter-se a um processo de aprendizagem especializada; e se qualquer pessoa pode fazer teatro por que não poderia lecionar teatro? O segundo elemento negativo é o fato de que, sob influência de determinadas e recentes tendências de vanguarda, muitas das quais artisticamente fascinantes, as técnicas teatrais passaram a ser usadas para fins pretensamente psicoterapêuticos, sob rótulos tais como desinibição, comunicação sensorial etc. E evidente que quando orientada por pessoas sem preparo adequado - e quem no Brasil tem preparo para isso? - tal atividade pode expor o aluno, principalmente tratando-se de criança ou adolescente, a sérios riscos para o seu equilíbrio emocional e a sua saúde mental.
Sei que há muita gente séria à frente de várias dessas iniciativas; mas a maneira como algumas delas vêm sendo divulgadas enche-me de preocupação. Ainda outro dia uma de nossas mais respeitáveis instituições culturais lançava um laboratório dramático "a cargo do ator, diretor e professor Fulano de Tal". Na minha vivência de 18 anos no meio profissional do teatro carioca, nunca ouvi falar em Fulano de Tal nem como ator, nem como diretor, nem como professor - e creio que isto, sem constituir prova de que seja ele fatalmente incompetente para orientar o laboratório, basta pelo menos para levantar uma desconfiança de alegação de falsa qualidade.
Outros cursos apregoam textualmente que estão aplicando o método Grotowski, quando é notório que o próprio Grotowski insiste, em repetidos depoimentos, que não existe um tal método, e desautoriza quem quer que seja a usar o seu nome nesse sentido.
Uma advertência especial deve ser dirigida àqueles que, sob o estímulo da abertura oferecida pela reforma do ensino, cogitam de dedicar-se ao ensino de teatro nas escolas de primeiro e segundo graus. Na atual situação de transição, quando a disciplina já está sendo implantada sem que existam professores adequadamente formados, a existência de cursos de curta duração para dar aos futuros mestres pelo menos noções rudimentares da matéria é desejável, contanto que se trate de cursos lucidamente orientados. Mas nenhum desses cursos pode ter a pretensão de formar efetivamente professores de teatro. Estes só poderão ser formados em autênticos cursos de Licenciatura comparáveis àqueles que preparam professores de Música, Desenho etc.; e a criação de tais cursos de Licenciatura não foi ainda equacionada pelo MEC.
O caos só poderá ser dissipado quando o governo regulamentar definitivamente o ensino teatral. Infelizmente, ao que parece, esta regulamentação está intimamente vinculada à regulamentação das profissões teatrais, que vem rolando pelos canais competentes há mais de oito anos, ou seja, desde que foi promulgada a Lei n° 4641 que, apesar de votada e sancionada, permanece até hoje letra morta, precisamente por falta da respectiva regulamentação.
(Nota TDM: Esse texto tem origem e criação em 1973. conforme informativo abaixo, e evidencia-se por indicações no texto de situações já resolvidas. Porém, como todo bom e revelador texto, muito do que se apresenta continua atual, ou, se por assim dizer, mais atual e expandido).
Publicado no JB em 26/07/73. Yan Michalski trabalhou no Tablado. Crítico teatral do Jornal do Brasil durante 23 anos, professor, ensaísta e tradutor, Yan foi um dos fundadores da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL).
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